Série volta de forma silenciosa para sua segunda temporada e continua a mostrar o lado cruel e sombrio dos soldados coreanos
D.P. Dog Day é uma série sul-coreana, que estreou em agosto de 2021 e teve sua segunda temporada disponibilizada, sem muito alarde, somente em julho deste ano, quase dois anos após seu lançamento. A narrativa acompanha Joon-Ho (Hae-In Jung) e Ho-Yeol Ham (Kyo‑Hwan Koo) enquanto membros da D.P. Desertor Pursuit (em português, “caçadores de desertores”), divisão responsável por capturar desertores.
Humanizando personagens e abordando temas como abuso de poder, bullying e assédio sexual, a série acaba mostrando muitos dos motivos pelos quais alguém pode vir a desertar, mesmo sabendo das pesadas consequências que suas ações podem acarretar. A série é baseada em uma história em quadrinhos online (webtoon) ambientada em 2014, que faz referência não apenas ao serviço militar do próprio autor e roteirista Bo-Hong Kim, mas também aos casos reais que aconteceram em bases militares sul-coreanas.
Como o serviço militar sul-coreano funciona?
Em meio ao vasto arquivo existente no site oficial do governo sul-coreano, os olhos curiosos são capazes de encontrar informações sobre a história do Departamento de Defesa Nacional, explicações detalhadas do alistamento e do serviço militar. A regra regente mais conhecida, e que também aparece na abertura de todos os episódios de D.P., nos lembra que todo homem considerado capaz deve se alistar no exército e servir ao seu país. Com as recentes mudanças, o tempo de serviço varia de 18 a 21 meses, e a apresentação ao governo deve ocorrer entre 18 e 39 anos de idade.
Há cinco maneiras de entrar no sistema militar coreano, elas sendo: 1) serviço compulsório: onde o jovem é convocado, passa por treinamento básico e é movido para um unidade de reserva; 2) sistema de reservas: as posições de oficiais são preenchidas por voluntários vindos do sistema de convocação compulsória; 3) oficiais de carreira: são pessoas que servirão a longo prazo, que se tornarão oficiais e suboficiais, sendo essa sua profissão; 4) sistema de voluntariado: os voluntários assinam um contrato com o país e ingressam na força e posição por escolha própria; 5) contratação de mercenários: qualquer pessoa, homem ou mulher, coreano ou estrangeiro que queira servir em troca de um salário.
Cada uma dessas categorias tem suas próprias peculiaridades. Mas o alistamento compulsório é o mais difundido, onde os combatentes são direcionados para o exército, sem direito de escolha, mesmo com a existência da marinha, da aeronáutica e dos fuzileiros navais. Uma outra opção é servir como agente de serviços sociais, que engloba, por exemplo, policiais e bombeiros, entre outros. Mas a aplicação para essas divisões deve ser requerida apenas através do sistema voluntário de alistamento. Quanto às recrutas mulheres, elas podem servir através do sistema voluntário ou pelo sistema para soldados de carreira, com a possibilidade de escolher qual força quer se juntar.
Ao conversar com alguns soldados, pude entender como o dia a dia deles nas forças armadas é sistemático e hierárquico. As regras são duras e explícitas. Contudo, existem técnicas de sobrevivência as quais essas pessoas devem seguir, mesmo que não sejam faladas em alto e bom som. A hierarquia comandada com mãos de ferro é o poder que fala mais alto, e por ser consolidada não apenas no ambiente militar, mas também no cotidiano, dá abertura a um comportamento conhecido na Coreia como “hazing”, algo semelhante a um trote estudantil muito agressivo, que pode perdurar todo o tempo de serviço militar.
As provocações muitas vezes ultrapassam palavras hostis e se tornam assédio moral, físico e até sexual. As consequências vão de deserções a situações extremas, como o Massacre da Ilha Ganghwa, em 2015, onde um fuzileiro identificado como Min-Chan Kim, abriu fogo contra sua equipe, matando quatro pessoas, e depois tentou tirar sua própria vida com uma granada – a mídia local afirmou que a motivação foi justamente o constante assédio sofrido por Kim. Outro dado alarmante entre os soldados é a alta taxa de suicídios.

De acordo com Joo-Hyeon Jeong, de 30 anos, natural de Busan, cidade litorânea ao sul da península, “muitas das vezes os superiores não querem causar alarde porque tudo está interligado às suas avaliações e promoções”. Ele serviu como policial auxiliar durante 21 meses, entre 2013 e 2015, e diz já ter sofrido bullying e abuso de poder, mas que nada foi feito a respeito, e por isso resolveu aguentar tudo calado.
“Havia muita violência em nosso esquadrão. Ao invés de trabalhar fielmente para servir minha nação, eu trabalhava para não levar bronca”, afirmou.
O Mais Longo dos Dias
Atualmente com 30 anos, Baek-Gang Song trabalha em um escritório em Ulsan, cidade em que também serviu as forças armadas da Coréia do Sul. Ele passou 21 meses, entre 2011 a 2012, no Comando de Inteligência e Defesa, onde teve que conviver com crises de ansiedade constantes.
“Era uma sucessão de momentos tensos e muita pressão. Eu tinha medo de como passaria meus 21 meses com homens os quais não sabia que tipo de pessoas eram. E eu estava certo em temer”, declarou.
Apesar de não ter presenciado ou sofrido qualquer tipo de assédio explícito, ele afirmou que o clima de tensão era constante e que sabia, não só o que acontecia nos bastidores, como também de que maneira uma vítima deveria agir segundo as regras militares. “Mesmo que sofresse assédio, eu não denunciaria, porque eu sei que nada mudaria”.
Assim como Jeong, Song destacou que seus superiores se preocupavam mais com suas avaliações pessoais e possíveis promoções do que com o bem-estar dos soldados.
“Todos os recrutas sabiam que deveriam tomar cuidado com tudo o que faziam e que não deveriam demonstrar que se sentiam desconfortáveis ou preocupados. No exército aprendi a ter uma paciência genuína, tive que aturar provocações 24 horas por dia, sete dias na semana. Pela primeira vez na minha vida eu não sabia como lidar com esse tipo de merda”, revela.
Glória Feita de Sangue
Hyeong-Tae Jeon trabalha na área logística em uma empresa de Nova Iorque, mas durante seu tempo de serviço, entre 2015 e 2017, ele era responsável por manusear armamento pesado, mais especificamente um obuseiro rebocado de 105 mm.
“Uma vez, um cara que tinha a mesma idade que eu e estava em uma posição acima de mim, fez com que eu ficasse de guarda durante 3 dias seguidos, o que é horrível, já que dormir é o elemento mais importante. Fiquei muito frustrado, mas não havia nada que pudesse fazer, apenas tive que lidar, eu não sabia como passar por aquilo tudo. Na minha cabeça, eu dizia a mim mesmo que deveria aturar tudo aquilo. Eu estava tentando tolerar ser feito de trouxa. Eu senti que iria me transformar em um Buda de tão paciente que fui”, disse.
A reclusão social que os soldados passam durante o serviço militar também os afeta profundamente, como afirmou Jeong, que deixou a badalada Busan, conhecida por suas praias, montanhas e bares, por um quartel.
“Imagine só, você aos 20 ou 21 anos, tendo que desistir de tudo, de sua universidade ou trabalho, raspando a cabeça e tendo que aguentar a violência de seus seniores para servir a nação. Depois que o serviço terminou eu fiquei feliz. Mas como passei dois anos longe, foi difícil me ajustar à sociedade novamente”.

Três homens em conflito
Joo-Hyeon Jeong, Baek-Gang Song e Hyeong-Tae Jeon identificaram a rigorosidade tóxica da hierarquia nos quartéis como um dos elementos mais prejudiciais do serviço, ao ponto de terem de seguir planos fadados ao fracasso apenas por serem ordens de superiores.
“No serviço militar, o sargento sênior não aceitava nenhuma ideia. Apesar do fato de que todos nós sabíamos que o que ele estava falando era errado, tivemos que escutar e realmente colocar um plano em ação só porque era uma ordem. Nossa sociedade é assim, a maioria dos homens coreanos apenas seguem o que seus chefes dizem, mesmo quando percebam que existe uma maneira melhor e que irá economizar tempo. O motivo é o mesmo. É uma ordem. Então, algumas boas ideias podem até surgir em mente, mas não dizemos em voz alta, porque temos certeza de que tudo o que dissermos não será levado em consideração”, confessa Jeon.
Oficiais mulheres, LGBTQIAPN+ e os obstáculos do voluntariado
Mulheres interessadas em seguir carreira militar podem servir através do sistema voluntário ou como oficiais de carreira após um treinamento que acontece de forma semelhante, independente do gênero. Contudo, a maioria de seus superiores são homens, aumentando exponencialmente os casos de abuso sexual e estupro.
Em 2021, o caso de uma oficial da aeronáutica sul-coreana que acabou cometendo suicídio por ter sofrido assédio sexual de seu colega chegou ao público de forma chocante. A situação ocorreu quando a Suboficial Ye-Ram Lee e o Suboficial Dong-Hoon Chang voltavam para a base das forças aéreas no dia 2 de março de 2021, após um jantar de confraternização. As gravações da câmera de segurança presente no carro revelam que a oficial Lee pediu diversas vezes para que Chang parasse de a assediar. “Você poderia, por favor, parar de me tocar?”
As falas foram acompanhadas de honoríficos de respeito para com seu abusador, já que ele era um veterano. De acordo com investigadores do Ministério da Defesa da Coreia do Sul, quando a oficial Lee relatou sobre como Chang havia a tocado inapropriadamente naquela noite, seus superiores tentaram abafar a denúncia. Os militares só apresentaram acusações formais contra Dong-Hoon Chang após a oficial Lee cometer suicídio no dia 21 de maio. Ye-Ram Lee tinha apenas 23 anos.
Nada de Novo no Front
Como a maioria dos superiores são homens, o assédio sexual acaba se tornando um dos maiores problemas dentro do serviço militar voluntário feminino sul-coreano, já que os chefes acabam tendo acesso livre às oficiais em cargos de menor prestígio.
“Eu li diversos artigos sobre casos de suicídio de oficiais mulheres causados por assédio sexual de seus superiores homens. Deve ser terrível para elas passarem por uma situação dessas sem nenhuma esperança de escapar”, relata a Da-Un Jung, uma mulher coreana de 31 anos, trazendo um ponto de vista feminino sobre a situação.
“Eu tenho uma amiga na marinha e me sinto impotente, pois não posso fazer nada por ela. E o problema do assédio, é algo proeminente na Coreia do Sul, não apenas no meio militar”, denuncia Jung.
A misoginia e o assédio sexual também são um problema nas bases masculinas, tendo como suas maiores vitímas recrutas LGBTQIAPN+ ou “suspeitos de serem LGBTQIAPN+”. Casos de soldados sendo abusados sexualmente, espancados, ou forçados a fazerem algo apenas por serem considerados afeminados são mais recorrentes do que se imagina.
No ano de 2017, a ONG de direitos humanos Anistia Internacional, entrevistou dezenas de soldados de forma anônima, trazendo à tona muitos casos cruéis e as verdadeiras dimensões da “caça às bruxas” que aconteciam nas bases masculinas.
Um dos casos mais discutidos de 2021 e 2022, tanto por envolver questões de gênero, quanto por discutir direitos da comunidade LGBTQIAPN+, foi o da Sargento Hee-Soo Byun. Ela se alistou voluntariamente em 2017 e, em janeiro de 2021, iniciou uma disputa judicial por ter recebido uma dispensa permanente injusta do exército, após passar por sua cirurgia de confirmação de gênero.
Em uma entrevista coletiva no início daquele ano, Byun falou sobre como planejava fazer sua cirurgia após o fim do serviço obrigatório e depois voltar a servir, desta vez pela divisão feminina. A sargento disse que gostava de seu serviço e queria continuar seguindo uma carreira militar.
“Independente da minha identidade de gênero, quero mostrar a todos que também posso ser um dos grandes soldados que protegem este país”, declarou.
Contudo, após uma dispensa temporária, com a piora de sua saúde mental, diagnosticada com depressão, Byun decidiu fazer sua cirurgia por não aguentar mais a disforia de gênero. Ao retornar à sua divisão, ela recebeu uma dispensa permanente sob o argumento de que não se enquadrar mais no que explicitamente diz a lei: “todo homem sul-coreano julgado fisicamente capaz deve servir à nação”.
Sobre a decisão, o porta-voz do Ministério Da Defesa disse à uma agência de notícias que a sargento havia sido submetida a exames em um hospital militar, que classificou a “perda” de órgãos genitais masculinos como deficiência física ou mental e por isso ela foi dispensada permanentemente. Apenas em outubro de 2021 o Tribunal Distrital de Daejeon decidiu que a decisão do exército foi ilegal.
O tribunal também decidiu que, por lei, ela era uma mulher e ordenou que o exército rescindisse a dispensa indevida. Infelizmente, Hee-Soo Byun não foi capaz de ver os resultados de sua luta, já que no mês de março, o corpo da sargento de apenas 23 anos foi encontrado sem vida em seu apartamento. A causa da morte foi identificada como suicídio.
O que poderá mudar?
A esperança da mudança surgiu nas eleições de 2022, quando a então líder de partido Kwon In-sook (Partido Democrata, com viés progressista) usou a série como exemplo para dizer em suas redes sociais que era a favor de transformar as forças militares.
“O que a série D.P. mostrou foi uma imagem emblemática do porquê o sistema de recrutamento deve mudar. Mostrou como a cultura militar às vezes se distancia completamente de nossa empatia mais simples”, postou.
Porém, o vencedor das eleições acabou sendo o direitista Suk-Yeol Yoon (Partido do Poder Popular, com viés conservador), e pouco voltou a ser discutido sobre o sistema de serviço militar desde então.
Entre os debates na sociedade e no noticiário, se discutia sobre uma possível obrigatoriedade do serviço militar para mulheres ou da completa mudança para um serviço voluntário. Essa decisão pode até parecer simples quando comparada com a realidade do serviço militar brasileiro, que tem um sistema completamente diferente de alistamento e recrutamento. Entretanto, muitas outras pautas afetam a decisão do Governo da Coreia do Sul. A queda constante da taxa de natalidade sul-coreana e equidade de gênero são exemplos.
Para além disso, a Coreia do Sul ainda se encontra oficialmente em guerra com a Coreia do Norte, tendo apenas o Armistício de Panmunjon, que foi assinado em 1953, como garantia de estabelecimento da paz entre ambas as nações. Ou seja, a diminuição da força militar é um ponto sensível para a defesa do país.
A discussão sobre o serviço militar e a vida nos quartéis estão longe de acabar, restando ao governo sul-coreano supervisionar e procurar estratégias para melhorar as condições de vida e proteger não apenas fisicamente seus soldados e soldadas, mas também mentalmente aqueles que protegem efetivamente sua nação. Para conhecer essa dolorosa realidade, a série D.P Dog Day é mais do que obrigatória.

