Flow | A animação independente que fez história

No ano passado, os filmes em animação impressionaram a crítica e o público com algumas surpresas interessantes. Quando nos afastamos do cinema do lucro estadunidense que se prende a uma demanda de mercado com pouca inovação, o internacional se abre para o novo e mostra que ideias transcendem dinheiro de empresas multibilionárias. Flow (Straume, no original) é uma dessas inovações. Originário da Letônia, Flow é uma animação independente que revoluciona o gênero não só pela sua temática, mas também pela sua produção. A equipe minúscula composta por 5 profissionais principais, incluindo o diretor Gints Zilbalodis, realizou toda a animação pelo Blender, um aplicativo gratuito de código aberto usado para criação de gráficos 3D. Flow conta a história de um gatinho solitário que vive em uma floresta, sobrevivendo aos desafios da vida selvagem, quando é pego por uma enchente que o une a uma improvável tripulação: uma capivara muito empática e preguiçosa, um lêmure acumulador, um secretário autoritário e um cachorro brincalhão.

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Animação é um gênero que recebe menos admiração do que merece. Sendo uma das mais belíssimas maneiras de se contar uma história, essa linguagem abre um campo de possiblidades que muitas vezes é desperdiçado com a bolha do mercado estadunidense, que incentiva a mesmice com a falta de inovação, tanto em narrativa quanto em traço. Algumas surpresas aparecem pelo caminho como Homem-Aranha no Aranhaverso, oferecendo um trabalho cheio de personalidade, as produções do estúdio Ghibli, com o traço de cada autor/diretor, e outras produções internacionais que buscam se reinventar. Apesar de inúmeras obras merecerem serem citadas no texto, não consigo igualar nenhuma a Flow.

Flow se distancia da antropomorfização dos animais e não busca trazer qualquer presença humana na animação. Ao invés disso, embarcamos em uma aventura entendendo a dinâmica dos personagens. Não se engane pensando que a ausência de diálogos deixa o filme chato, muito pelo contrário! A imersão através dos visuais magnificos e a trilha sonora pulsante traz uma sensação de tranquilidade e serenidade ao acompanhar o amadurecimento do gatinho simpático amedrontado. O protagonista é expressivo, cauteloso, solitário e, até, misterioso. Pouco se sabe sobre sua história ou a história desse universo e, honestamente, pouco importa qual era é abordado no filme. O que importa é que o gatinho precisa sobreviver a sua brusca mudança de vida. Flow é sobre o fluxo da vida e como as mudanças nos colocam em caminhos que, muitas vezes, não são o que escolhemos, mas são o que precisamos seguir para poder prosperar.

Enquanto muitos buscam significado religiosos e ocultos nas personagens que flutuam pelo barco, o meu texto seguirá por um caminho diferente. Afinal, filme nenhum precisa ter uma explicação. A aventura do gatinho se aproxima muito mais de uma ascensão espiritual do personagem através da sobrevivência, mostrando a comunhão com seus colegas animais. É a união fazendo a força e, ao contrário do que se pensa, gatos são seres sociáveis, mas o real motivo para essa escolha é pelas características felinas: gatos são ariscos, desconfiados, demoram para pegar confiança, são ágeis e muito espertos.

Engana-se quem acredita que somente a humanização é capaz de construir bons protagonistas que permeiam sua jornada de sabedoria e crescimento. O gatinho também evolui, buscando nos seus companheiros uma forma de seguir o fluxo da vida diante da dificuldade. Tudo isso com uma belíssima fotografia que trabalha a iluminação com um valor dramático emocionante. Muitas vezes, as cenas são continuas e aproximam o espectador ao ponto de vista do gatinho: um ser tão pequeno em um mundo cheio de obstáculos e seres muito maiores. Ainda assim, por sorte ou apenas por casualidade, o gatinho consegue prosperar, diferente de alguns amigos que faz pelo caminho.

A tripulação improvável do barco é a união de seres com muita personalidade que não deixam de ser o que são: animais selvagens. Nota-se que selvagem não é sinônimo de falta de empatia, carinho ou inteligência. A capivara, por exemplo, é aquele que mais se coloca no lugar do outro, sendo um animal quieto, mas muito expressivo. Ainda que Flow se proponha a uma narrativa mais próxima aos animais como eles são, a liberdade criativa também aborda elementos fantasiosos. Você pode discutir com o filme por coloca-los pilotando um barco ou flutuando sem nenhuma explicação, ou você pode apenas apreciar a beleza dessa aventura e sentir a fluidez com o seu coração.

Flow fez história para o seu país vencendo o Globo de Ouro de Melhor Animação (desbancando Pixar/Disney) e acumulando diversos outros prêmios e indicações. Esse é um dos favoritos para o Oscar de Melhor Animação e, também, fez história recebendo a indicação para Melhor Filme Estrangeiro, o primeiro representante da Letônia. A comoção no país foi tão grande que uma estátua do gatinho foi erguida para celebrar o feito, assim como maior incentivo ao cinema nacional.

Mesmo que sua premissa aborde o perigo iminente, o caos natural não atrapalha o sentimento magistral de paz. A beleza do nosso mundo sob o ponto de vista de um gatinho amedrontado nos leva a uma reflexão sobre a vida, sobre os ciclos naturais e o equilíbrio entre caos e harmonia. O conjunto da obra torna-o uma das melhores animações de 2024, revolucionária em estilo e produção.