As tranças africanas, assim como os penteados afro no geral, sofreram várias ressignificações ao longo dos séculos. Ainda hoje conecta e resgata a comunidade negra a sua ancestralidade, além de permear historicamente discussões e articulações importantes sobre identidade negra, cultura e política. Pensando especialmente nessa década, em que a mídia tenta as vender a todo custo como uma fashion trend, é importante trazer a memória suas origens e significados para afirmar que:
Não. Elas não são uma tendência da moda.
Elas são sobre identidade.
Reconhecimento.
Ancestralidade.
A trança nagô
As origens das tranças afro datam milhares de anos e possuem inúmeros significados fundados nas culturas das civilizações africanas. A descoberta de esculturas da civilização Nok, que evidenciam mulheres com tranças comumente chamadas por “nagô” nos estados do Rio de Janeiro e da Bahia, são de aproximadamente 500 a.C. A civilização Nok foi um grupo da região do Norte da Nigéria, cuja cultura floresceu até o século II A.D.

Trançar era uma espécie de arte social. No continente africano do início do século 15, o cabelo tinha uma função para além da estética: ele era um transmissor de mensagens na maioria das sociedades da África Ocidental (como os Mandingas e Iorubás, além de outros grupos étnicos que preencheram os navios negreiros para o “Novo Mundo”). Pelo tipo de penteado – seu desenho e o tipo de material, era possível identificar a qual tribo a pessoa pertencia, como também sua religião, grupo étnico, condição social e outros fatores. Em alguns casos, o estilo da nagô e a matemática envolvida para desenhar sua geometria, poderia indicar as origens geográficas de um indivíduo e seu sobrenome.
O ‘Novo Mundo’
Existem diversas narrativas sobre o uso das tranças no chamado ‘Novo Mundo’, ou seja: após os africanos terem sido colonizados e retirados de seu lar.
Na América Latina, mais especificamente em solo colombiano e brasileiro, as tranças nagô eram usadas da forma tradicional, para se comunicar. Porém, num contexto em que a cultura do povo negro é cruelmente reprimida e hostilizada como o da escravidão, nossos ancestrais lutaram e resistiram, utilizando a nagô para desenhar rotas de fugas que ligavam aos quilombos. As mulheres negras trançavam as cabeças uma das outras e quando prontas, podiam usá-las para chegar ao lugar onde encontravam refúgio.
Segundo o “Know Your Caribbean“, no Instagram, as tranças também eram usadas para esconder arroz e sementes no cabelo, para que assim, pudessem se alimentar na jornada para esse Novo Mundo. O vídeo a seguir, gravado na comunidade Maroon do Suriname – Maroons são descendentes de africanos que se estabeleceram em assentamentos independentes nas florestas tropicais -, mostra o modo como os seus ancestrais praticavam isso.
Bantu Knots
Os bantu knots são pequenos coquinhos feitos ao redor de toda a cabeça. Se você é uma mulher negra, muito provavelmente já usou em algum momento da vida, principalmente durante a infância. Minha mãe as chamava de “pitózinhos” – por não conhecer a verdadeira nomenclatura – e minha avó materna penteava seu cabelo da mesma forma quando pequena. Porém, se quando criança, eu os usava para dormir e simplesmente proteger o cabelo, a coisa mudou. Nos últimos anos, após aparecer na cabeça de mulheres negras como Rihanna e Jada Pinkett-Smith, os bantu knots passaram a ser usados em diferentes ocasiões pela comunidade negra.
Bantu significa nada mais, nada menos, que “gente” e faz referência a mais de 400 grupos étnicos do continente africano, como o povo Zulu, do qual foi originado esse estilo de penteado afro.

Tranças Fulani

A tribo Fulani – ou Fulas – é um povo principalmente muçulmano, espalhado por muitas partes da África Ocidental. Esse grupo se encontra sobretudo na Nigéria, Mali, Guiné, Camarões, Senegal e Níger. É também a maior comunidade de pastores nômades no mundo.
As tranças feitas pelas mulheres Fulani chamam atenção pela sua extravagância. Usualmente, o cabelo é trançado com extensões, com uma única fileira de trança no meio. Com o penteado finalizado, as tranças são deliberadamente adornadas com moedas, conchas, contas e fitas metálicas.
Por muito tempo, e devo dizer, indevidamente, as tranças Fulani foram conhecidas como “as tranças da Alicia Keys”, sobretudo nos Estados Unidos, onde o povo Fulani é fortemente conectado a história de escravidão. Após o videoclipe da icônica Fallin, o penteado virou quase que a assinatura da estrela por muitos anos, especialmente na década de 2000, mas a sua origem não era uma preocupação para a maior parte do público que apreciava o penteado.
Box braids e a transição capilar

As box braids são, provavelmente, as tranças mais populares ao redor do mundo e no Brasil se tornou mais conhecida durante a década de 90, com a onda hip hop e R&B do final do década. Assim como as anteriores, possuem um significado histórico, social, político e cultural. Elas são tão amadas hoje quanto eram há 3.500 a.C pelas mulheres da África do Sul e pode desempenhar um papel especial na vida de quem passa pela transição capilar.
A transição capilar é um momento muito delicado na vida de uma mulher negra, é abandonar um lugar que serviu para alimentar o auto-ódio, um lugar que é imposto por um sistema racista e pautado num ideal eurocêntrico de beleza. Passar pela transição e enfrentar todos os sentimentos que fluem nessa jornada pode ser muito desafiador para muitas mulheres negras, e o uso das box braids se tornou um facilitador do caminho para retornar ao cabelo natural. Em outras palavras, o uso das box braids empodera muitas mulheres por aí em questão de identidade, essa noção de identidade que desde nossa infância é fragmentada de modo constante.
Apropriação cultural

Quando a cultura dominante faz uso e assume códigos e elementos que são próprios de uma cultura específica, configura-se um ato de apropriação cultural.
A foto ao lado, retirada do instagram da socialite Kim Kardashian-West, teve sua legenda atualizada de “Bo Derek” para “Bo West” (sobrenome da cantora). Para que você entenda: Bo Derek é uma atriz norte-americana, branca, que utilizou essas mesmas tranças Fulani para o filme “10”. Quando Kim Kardashian atribuiu o penteado a uma mulher branca dos Estados Unidos, ela esvaziou todo o significado histórico e cultural do tal penteado africano, como se ele não existisse antes de Bo Derek. Como se tivesse sido inventado em algum estúdio de Hollywood. Como se não fosse o suficiente, a atriz saiu em defesa de Kim, alegando que a Fulani foi inspirada em Ann-Margret’s: uma atriz branca sueca.
Apesar de todo o blacklash recebido, Kim não parou de apropriar a cultura africana. Pelo contrário, episódios como esse são extremamente recorrentes na família Kardashian-Jenner.


Pessoas brancas como as Kardashians não possuem qualquer conexão ou respeito à cultura negra. Especialmente quando se trata de cabelo, a apropriação cultural tem um potencial ofensivo ainda maior, em razão das inúmeras lutas das mulheres negras em prol da valorização e respeito tanto ao seu cabelo natural quanto as diversas estilizações de tranças e afros que foram criados para cabelos crespos e cacheados, ainda no seio das primeiras civilizações africanas. As tranças se tornaram um signo de amor próprio, de orgulho, e de autoaceitação para mulheres negras.
Por isso, quando a mídia, a cultura popular e a indústria da moda reproduzem e enaltecem esses penteados em mulheres brancas e os depreciam quando feitos em mulheres negras, é simplesmente mais um meio para a marginalização do povo negro.

Ainda hoje, mulheres negras adeptas aos penteados afro sofrem preconceito e exclusão devido a utilização deles. São muito comuns casos em que pessoas negras não são admitidas para um emprego ou demitidas devido a marginalização da cultura negra expressa pelo cabelo, sendo atrelados a má higiene, perigo, drogas, entre outros fatores absurdos.
Independente da popularidade ou da mágica do mainstream, as tranças são uma parte intrínseca da nossa cultura, que não deve ser esvaziada. Nossos ancestrais tinham orgulho desses penteados e há milhares de anos carregamos, de geração em geração, com os propósitos mais diferentes possíveis, essa herança. Nosso cabelo é nossa coroa e nós continuamos a fazer história com ele.

Deixe um comentário