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Crítica | Eu, Um Outro

Um retrato sincero da transmasculinidade brasileira

O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais, só em 2021 foram 140 assassinatos de ódio contra a comunidade – o chamado transmicídio. Dentro dessa realidade, a diretora e roteirista mineira Sílvia Godinho estabelece seu documentário, Eu, Um Outro, retratando o cotidiano de três homens trans que lutam pelos seus direitos num país transfóbico.

O filme é resultado da longa parceria entre a diretora e a Oficina da Criação, com a produção de Claudia Santos e a divulgação da O2 Play. Produzido em 2019, o longa já percorreu festivais nacionais, como o 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e o 27º Mix Brasil, além dos internacionais Outfest Los Angeles 2020 e Melanin Pride Festival. Agora, em 2022, ele estampa cartazes de cinemas selecionados pelo país.

“Era importante mostrar que homens trans também têm o direito de se sentirem amados, de realizarem seus sonhos e desejos, de se indignarem diante de injustiças e de construírem suas vidas com respeito e dignidade. Eu me preocupei em construir um retrato bem fiel e simples da vida como ela é para os homens trans, sem romantizar o tema e fugindo de estereótipos. Eu queria que os homens trans se sentissem orgulhosos de se verem na tela”, afirma Sílvia Godinho.

Na narrativa, acompanhamos três personagens com tramas diferentes que se entrelaçam sobre o plano de fundo de Belo Horizonte: o influenciador digital Luca Scarpelli, que retorna ao Brasil para reencontrar amigos e restabelecer sua vida; o professor de filosofia Raul Capistrano, que deseja seguir a carreira acadêmica enquanto lida com a família transfóbica de sua esposa; e o segurança Thalles Rocha, que luta pelo respeito de sua mãe e a troca do nome de registro em seus documentos.

Num lance encadeado de cenas, o espectador constrói o quebra-cabeça de cada narrativa. Luca está hospedado no mesmo prédio em que Raul vive e que Thalles é segurança. Eles interagem entre si aqui e acolá, mas o enfoque se dá em suas intimidades e pessoalidades. Enquanto Raul revive a paixão por sua esposa, por exemplo, Thalles se apaixona mais uma vez e Luca se reconecta com o seu primeiro amor. Assim, a obra explora âmbitos semelhantes da vida de cada um, embora evidencie diretamente suas diferenças.

“Homens trans são apagados da sociedade e, consequentemente, dos registros audiovisuais. Ou seja, são tratados como se não existissem, o que é também uma forma de violência contra esse recorte. Isso me motivou a entender quais eram as questões específicas desse grupo que não era reconhecido nem dentro de sua própria comunidade. Minha intenção foi criar um dispositivo de registro de suas vivências e naturalizar a existência de corpos trans na vida em sociedade”, esclarece Sílvia Godinho sobre seu interesse dado a homens trans no longa.

Ela conviveu por seis meses ao lado de Raul e Thalles antes das gravações, com a intenção de criar um laço de confiança e intimidade na equipe. A aproximação com Luca, entretanto, divergiu das demais. “Luca já era influenciador digital, já tinha alguma intimidade com a câmera. Com ele fizemos um trabalho diferente, mais próximo do que fazemos com os atores, de criar conexão com a câmera e com o ambiente de um set de filmagem”, complementa Godinho.

A direção valorizou a voz e a intimidade dos filmados durante o processo criativo e as gravações: “Apesar de não termos roteiro com falas escritas, eles entendiam a intenção do que estávamos gravando e participavam ativamente dessa construção. Nas cenas de maior intimidade, a gente tomava cuidado para ter o mínimo de pessoas no set, éramos eu (Sílvia Godinho), a fotógrafa Alexandra Henão e o técnico de som Gustavo Fioravante. E só filmávamos o que era acordado com eles. A base de todo o processo foi o respeito e a confiança”.

Para isso, o longa uniu ferramentas documentais a técnicas de ficção, apresentando os três personagens como figuras intimistas e realistas, ao mesmo tempo que desenvolvidas sobre uma narrativa similar a de obras fictícias. Tal característica é evidente em como as cenas mais tocantes do filme são as mais sensíveis aos protagonistas. As comemorações e dores de Luca, Raul e Thalles se comunicam diretamente com a audiência, seja ela cisgênero ou transgênero. Diferente de outros documentários sobre transgeneridade, em Eu, Um Outro, a transfobia não é protagonista. A empatia é a força motriz da obra.

“Para mim era importante criar empatia e identificação no espectador pela emoção. Eu quis fazer um filme que fosse identificável para o público heterossexual e cisgênero, mas que também fosse significativo para a comunidade trans. Por isso decidi fazer um filme de amor, um drama, com curvas narrativas, altos e baixos, mas sem perder de vista que o que eu estava fazendo era um documentário, um registro do cotidiano daqueles personagens”, comenta a diretora.

O único ponto negativo do filme é a expressão usada para definir a questão transgênera em alguns trechos do longa e em sua divulgação. Na sinopse, disponível em diversos sites de cinema, os protagonistas são descritos como “nascidos mulheres biológicas”, termo erroneamente utilizado para descrever homens trans, que ignora o construto social de gênero e reforça teorias biologicistas do feminismo radical. Esse simples derrape é o suficiente para afastar um público trans que, de fato, se sentiria contemplado pelo documentário.

Apesar disso, as inspirações ao famigerado Eu, Um Negro (1959), do francês Jean Rouch, fazem o resultado final do documentário ser certeiro: uma obra sensível que expõe as vivências dos retratados e invoca a empatia por meio delas. Dessa forma, Sílvia Godinho e sua equipe ensinam ao cinema um novo modo de abordar a transgeneridade, evidenciando a necessidade de uma reforma sociocultural que acolha e apoie pessoas trans em seu cerne. Com um desfecho aberto, “Eu, Um Outro” honra seu título, transformando “o outro” em uma parte essencial de nós – até mesmo após seus créditos.

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